CORES DO LUTO.QUAL É A ESPECIAL?
Roupa do luto, da sorte, de casamento: é a moda que veste nossos rituais
Em algumas colunas aqui, abordei de diferentes formas a importância das cores e o quanto elas podem revelar várias coisas sobre a gente, aquelas perceptíveis que impactam nosso olhar e também aquelas mais subjetivas, para quem tem outros sentidos aguçados a partir do olhar.
As cores podem revelar nossos sentimentos, nossos desejos, nossos gostos, nossa personalidade. Eu mesma já usei - e uso - as cores como um traço do meu ativismo através da moda. Na ideia de existir para além de resistir, falei muito sobre isso em um dos vídeos mais assistidos da minha carreira, um que fiz com a JoutJout falando sobre o quanto importa a minha cor preferida, o amarelo, no caso.
Porém, em 2020, logo no início, fui atravessada por uma experiência nova com as cores, a partir do luto do meu companheiro, o Ba-Senga, com a partida de seu pai, meu sogro. Para mim, foi bastante curioso observar a escolha dele de fazer luto da forma mais tradicional possível. Basicamente porque, hoje em dia, poucas pessoas fazem isso, seja aqui seja em outros países - ele é de Moçambique. Ele foi o único de quatro irmãos, por exemplo, que resolveu fazer isso.
Quando ele soube do falecimento do pai, antes de ir para lá, me lembro da gente sair para comprar roupas pretas para as cerimônias que ele participaria. Me lembro também dele retornando de lá, um tempo depois, com as roupas pretas em casa. Num primeiro momento, achei que era mais um lance da logística da mala e tudo o mais. Só depois que a gente conversou, entendi que o luto seria feito.
Foi um ano inteiro assistindo e acompanhando uma pessoa vestindo roupas pretas o tempo todo. É impactante. Primeiro, é como se aquele processo que a gente tem de escolhas diárias para se expressar através das indumentárias tivesse sido subtraído. Depois, entende-se o contrário. Que esta é também uma escolha.
Mas, para mim, que me expresso muito através das cores, era inevitável pensar que as expressões dele estivessem neutralizadas, silenciadas. Não ia perceber várias coisas nele. A mudança do humor, de papéis que ele cumpriria num dia, e várias outras coisas. Não tinha "mudança", apenas uma constância. Monocromático.
E, ao omitir essas "nuances", é como se ele não oscilasse, como se as emoções estivessem mais estáticas, suspensas. E isso vale para qualquer cor. Não era porque ele estava usando preto. Se ele usasse apenas vermelho ou azul ou qualquer outra cor ininterruptamente, eu certamente sentiria a mesma coisa.
Eu falo tanto nessa coluna que moda é expressão — e acho sempre impressionante como muitas pessoas ainda negam isso. Mas é a moda que a gente escolhe para muitos ritos, inclusive para expressar para o mundo os momentos e transformações pelas quais a gente está passando. Tem a roupa do luto, a roupa do casamento, a roupa daquela data especial, de uma reunião importante, a roupa que vai dar sorte, a roupa que não devo usar para não atrair a má sorte. Tem a roupa de domingo para os católicos, de sexta para os candomblecistas. É tudo sobre moda aqui.
Na elaboração deste texto, eu perguntei a ele como foi a experiência de usar preto todos os dias. "Foi uma experiência incrível! A cada momento que escolhia a roupa, eu me lembrava do meu pai. A cada momento que colocava roupa pra lavar, lembrava do pai. Cada vez que ele olhava para o varal e via só uma cor, lembrava do pai", ele me disse. E isso me trouxe uma noção de como tem beleza e profundidade nas cores, coisas que a gente vai perdendo a sensibilidade de perceber.
Por exemplo, quando o varal é colorido, a prateleira, os cabides distribuídos no armário, isso diz alguma coisa. Mas, como diz "sempre", estamos todo dia vendo aquilo, talvez a gente nem perceba mais. Mas, nessa situação específica, quando ele substituiu tudo para uma cor só, foi notável e comunicou muita coisa.
Na real, comunicou as duas coisas. Que tanto uma cor só é importante, como várias também são. Uma coisa significava a reverência a uma vida que partiu, uma falta, uma ausência. A outra, a continuidade. Porque do mesmo jeito que foi muito curioso ver apenas uma única cor durante um ano, foi igualmente emocionante e curioso assistir as outras cores todas voltando.
Nesse dia, minha filha e eu preparamos uma caixa de acessórios e roupas coloridas para o Ba-Senga. E aquela caixa simbolizava a vida, continuidade. Mas, não só. Também era um parabéns pela resistência, também era uma admiração pelo respeito com o pai. E quando ele abriu a caixa colorida, foi muita emoção para nós três, um momento muito bonito que compartilhamos. Os dias seguintes foram de novas cores e as pessoas mais próximas a nós perceberam a diferença. As que não sabiam do luto repararam: "Nossa! O Ba-Senga tá diferente! O que aconteceu?". É muito interessante a comunicação que se expressava a partir desta observação. É o poder das cores.
Isso tudo me faz conectar com uma outra ideia a respeito das cores, que pode até merecer outra coluna, mas vou começar por aqui. A ideia de que tem muita gente que ainda não consegue usar todas as cores por várias questões sociais e fico aqui pensando o quanto isso pode representar falta de liberdade. Por exemplo, não poder usar branco "porque engorda" ou tem que usar preto "porque emagrece". Não pode usar vermelho ou amarelo porque a pele é preta demais, "vai chamar muita atenção", sabe? Quanta liberdade e expressão a gente tira das pessoas quando tira dela a possibilidade de usar a cor que quiser, que sentir? Enfim, muita coisa na cabeça.
Muitas reflexões que eu estou tendo graças a oportunidade de vivenciar este momento com meu companheiro, e por isso, agradeço a ele (que deve estar lendo aqui). Agradeço também por liberar que eu compartilhe com todes neste texto uma coisa tão íntima, mas que nos foi tão rica e bonita.
Tenho certeza que ele aprendeu muito neste processo. Sobre ele, sobre o relacionamento dele com ele mesmo, dele com a vida, dele com o pai, mas junto com isso ele gerou aprendizado pra quem tava perto, nossa filha Ayo e eu. Obrigada!
E você? O que aprendeu com a coluna de hoje?
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